Canedo: Firmino e a arte do craque invisível

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Roberto Firmino lançou a sua biografia em que conta detalhadamente os tempos de Liverpool. Alguns trechos disparados para a imprensa inglesa só reforçam a minha tese de que se trata de um craque invisível.

E, sim, isso é um tremendo de um elogio. No que dependesse da minha vontade não precisaríamos de qualquer esforço para reconhecer o seu futebol. Esse seria o mundo ideal, mas…

Firmino é visto como um atacante com média de gols relativamente baixa (0,30 nos Reds), de carreira importante na Europa, embora nunca como protagonista. Não estaria errado se não viesse acompanhado de um julgamento depreciativo, acredito eu, por não ter atuado por um grande clube brasileiro ou decidido uma Copa do Mundo (aqui com leve dose de ironia).

Mas eu o considero um atleta de inestimável contribuição além das planilhas. E para isso precisamos realmente ver muito jogo — ou ter conhecimento de situações que não estão ao nosso alcance.

No livro, Firmino narrou os problemas entre Sadio Mané e Mohamed Salah, com quem formou um trio encantador no Liverpool a partir da temporada 2017/18. O brasileiro foi o primeiro a chegar ao clube, em 2015, em seguida veio o senegalês e, por último, o egípcio.

Não é que os dois se odiavam, nada disso, mas desentendimentos dentro de campo aconteciam com frequência. Especialmente porque, no início, Salah não gostava tanto assim de passar a bola…

  • Eu conhecia esses caras muito bem, talvez melhor do que ninguém. Era eu lá em campo, bem no meio deles. Vi em primeira mão os olhares, as caretas, a linguagem corporal, a insatisfação quando um estava bravo com o outro. Eu podia sentir isso. Eu era o elo entre eles no nosso jogo ofensivo e o bombeiro nesses momentos. Para muitos, aquele desentendimento entre Sadio e Mo foi o primeiro; para alguns, o primeiro e o último. Mas eu sabia que isso estava acontecendo desde a temporada anterior, 2018/19. Meu instinto e meu dever era acalmar a situação entre eles. Derrame água no fogo, nunca gasolina — disse.

Firmino falava, aqui, de um episódio específico, na vitória por 3 a 0 sobre o Burnley, em 2019. Após o jogo, ele foi filmado subindo as escadas entre Mané e Salah com uma cara de quem havia presenciado um climão…

Mané, de personalidade explosiva (já sabemos disso por sua passagem no Bayern), havia ficado furioso ao ser substituído nos minutos finais depois de Salah optar pelo chute em vez do passe. Jürgen Klopp deu razão ao senegalês ao falar na frente de todos. Precisamos reconhecer que o egípcio melhorou bastante com o tempo.

Até isso acontecer, Firmino precisou atuar como um “pacificador”, como ele mesmo definiu. E era adorado por ambos porque os tratava sem privilégios.

  • Eu nunca tomei partido. Por isso eles me amam: eu passava a bola para os dois, minha preferência era pela vitória do time. Muitos focam no que eu trouxe para o trio em termos táticos, mas talvez o elemento humano fosse tão importante quanto: meu papel como um pacificador, o elo de união. Se eu não fosse assim, não existiria nada além de tempestades entre os dois em campo.

Firmino sempre aparentou ser tímido, acanhado nas entrevistas, e provavelmente também não deve ter sido fácil arrancar tais declarações para o autor do livro. Mas já sabemos que o invisível também tem o seu valor.

Em campo, nunca teve problemas, pelo contrário.

Firmino interpretava a função de falso 9 como poucos, permitindo que Salah e Mané pisassem mais na área para marcar os gols que o Liverpool precisava.

Certa vez, após uma goleada sobre o Manchester United, Klopp se debulhou em elogios (a citação merece entrar na íntegra):

  • O Salah recebe muita atenção, e isso é mérito dele, mas o Bobby (Firmino), para as pessoas que têm algum conhecimento de futebol, eu tenho certeza que, quando ele se aposentar, escreverão livros sobre a maneira como ele interpretou o falso 9. Não estou dizendo que ele inventou ou que nós inventamos algum esquema, mas, pela maneira como ele joga, parece que isso é verdade (risos). Cada jogador tem sua função em campo, e algumas dessas funções são defensivas. E o que o Bobby fez nesse departamento na partida foi uma coisa de louco. Ofensivamente, ele é a ligação de todas as jogadas e ainda finaliza bem de tempos em tempos. Ele é o cara que conecta as jogadas, e o melhor “defensor ofensivo” que já vi na minha vida. É um jogador muito importante para nós. É o cara que persegue a bola, incrivelmente inteligente taticamente e consegue atuar nos menores espaços e tomar as melhores decisões de forma rápida.

Além disso, deixo como contribuição a espetacular análise de Thierry Henry sobre a assistência de letra para Salah contra o Southampton. Firmino joga bola.

O dinheiro da Arábia Saudita o seduziu, e provavelmente não o veremos na primeira prateleira da Europa novamente, ou até mesmo no futebol brasileiro numa idade razoável. Mas fique sabendo que, se você não enxerga o que ele faz, não significa que ele não faça…

Victor Canedo
Victor Canedo

Victor Canedo trabalhou por 12 anos como repórter de futebol internacional no Grupo Globo. E até hoje mantém o hábito de passar as manhãs e tardes dos fins de semana ouvindo a voz de Paulo Andrade. Para equilibrar a balança dos colunistas deste site, é torcedor do Arsenal desde Titi Henry.