Depois de uma longa espera, o início do Brexit começou. Ainda com muitas incertezas sobre o que esse movimento realmente vai representar para a sociedade inglesa, os questionamentos naturalmente também se aplicam à Premier League.
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- Quais são os impactos do Brexit na Premier League?
Afinal: como a saída do Reino Unido da União Europeia pode afetar a liga de futebol mais forte do mundo?
Apesar de ter chegado o tal dia, muitos aspectos práticos do Brexit ainda não estão claros. Em relação à Premier League, não é diferente. Sabe-se que haverá um período de transição durante a implementação do acordo, até dezembro de 2020. Mas, além do que ainda precisa ser negociado, também restam muitas dúvidas sobre quais das novas medidas do acordo já serão válidas durante esse período.
O que se sabe é que alguns efeitos na economia britânica já são sentidos desde a decisão do referendo, em 2016. Algumas empresas multinacionais que possuíam sede em Londres já se mudaram, e a cidade deixou recentemente de ser o principal hub comercial do mundo.
Além disso, outro grande questionamento econômico no país é sobre o valor da libra, que impacta diretamente o poder de compra dos clubes do país.
“O Brexit deve sim impactar o valor da libra, que já vem variando de maneira irregular desde a aprovação do referendo. A curto prazo, essa variação deve continuar ocorrendo, mas a médio e longo prazo, há chances de que haja um certo isolamento da economia inglesa, e uma consequente desvalorização do valor da libra”, conclui Ivonei Trindade, jurista especialista em Relações Internacionais.
Consequências diretas do Brexit à Premier League
Inicialmente, a maior preocupação é justamente em relação à situação jurídica dos atletas nascidos em países da União Europeia. Até antes da implementação do acordo do Brexit, eles estavam juridicamente aptos a viver e trabalhar livremente na Inglaterra, sem a necessidade de uma aprovação prévia do governo inglês por meio de vistos, baseados no princípio europeu da livre circulação.
Andrei Kampff, advogado e jornalista criador do blog Lei em Campo, especializado em Direito Esportivo, e Luiz Costa, advogado brasileiro que trabalha em Londres, além de também ser colunista do blog, comentam esse ponto da mudança:
“Os atletas europeus até agora não se enquadravam na regra imigratória inglesa para estrangeiros. A partir do Brexit, eles passam a ter que respeitar as mesmas regras imigratórias de qualquer atleta não britânico e não comunitário, como um brasileiro, um japonês, etc. Então, um atleta francês, ou português, por exemplo, passa a ser igual a um japonês, ou brasileiro, para o futebol inglês, salvo algum tratado específico no futuro. Mas essa é a tendência de hoje, com a leitura fria do Brexit e ainda sem uma adequação às especificidades do esporte.”
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Atualmente, as regras para concessão dos vistos de trabalho para estrangeiros na Inglaterra são bem rígidas. O Ministério do Interior do país criou um sistema de vistos para os estrangeiros. No caso de jogadores de futebol, é a FA que executa e fiscaliza essa política.
Os vistos para os jogadores são concedidos com base num sistema de pontuação, que busca avaliar a “relevância” da contratação daquele atleta para a liga.
Esse sistema leva em consideração vários fatores. Critérios como a participação daquele jogador nos jogos de sua seleção, a posição dessa seleção nacional no ranking da Fifa, o valor de sua transferência, a quantia recebida em salário e um histórico profissional recente, além de outros, são levados em conta.
Conforme o Lei em Campo, “as leis imigratórias britânicas são muito restritas. Por exemplo, para se liberar visto, é preciso se provar que esse atleta que irá jogar no país promova um acréscimo técnico ao esporte. É necessário mostrar que esse atleta é mesmo de elite.”
Como alguns podem ser afetados
Hoje, na Premier League, cerca de 70% dos jogadores são não-britânicos, sendo a maioria nacionais de países da União Europeia. De acordo com levantamento da Associated Press, 65% dos jogadores europeus que jogam hoje na Premier League teriam sido barrados, caso o atual sistema de pontuações e vistos fosse aplicado a eles.
A BBC já havia feito pesquisa parecida, logo após o referendo de 2016. Apuraram que aproximadamente 330 jogadores das duas principais divisões da Inglaterra e da Escócia seriam impedidos de receber vistos para atuar no Reino Unido.
Entre eles, estava N’Golo Kanté, que nunca havia sido convocado para a seleção francesa antes do histórico título do Leicester em 2016, por exemplo. Em 2017, ele foi eleito o melhor jogador da Premier League, após conquistar novamente o título, dessa vez com o Chelsea.
Antigo companheiro de Kanté, Mahrez também teria sido impedido de vir para o Reino Unido se as atuais regras de visto fossem aplicadas a ele. Além da argelina, Mahrez também possui a cidadania francesa, o que lhe permitiu ir para o Leicester sem a necessidade de um visto especial.
A dupla cidadania também é a realidade do brasileiro e mais novo fenômeno do futebol inglês, Gabriel Martinelli, que também possui cidadania italiana. Por isso, ele foi diretamente liberado para atuar no Arsenal. Douglas Luiz, que hoje está no Aston Villa, quando foi contratado pelo Manchester City não recebeu o visto de trabalho para atuar na Inglaterra.
Desse modo, podemos afirmar que a grande preocupação inicial do Brexit diz respeito ao que o governo inglês decidirá em relação à circulação e autorização de trabalho dos atletas da União Europeia no país. Essa restrição pode se dar em diferentes níveis.
Princípio da reciprocidade
É bom também lembrar que, pelo princípio da reciprocidade, o mesmo vale para atletas britânicos atuando em equipes da União Europeia. Mesmo assim, o governo inglês promete não facilitar.
Mesmo com as muitas incertezas que ainda pairam no ar, os especialistas do Lei em Campo não acreditam em um grande êxodo de jogadores europeus da Premier League, numa espécie de “efeito Bosman ao contrário”:
“Apesar da importância e do impacto que o Brexit deve ter, não enxergamos a possibilidade dele desencadear um processo jurídico do peso do Caso Bosman. Hoje a questão passa mais mesmo por uma readequação das regras imigratórias, com a possibilidade de que haja um acordo especial no futuro.”
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Um outro ponto que está diretamente relacionado ao fim da livre circulação europeus no Reino Unido pós-Brexit é a possibilidade que os clubes ingleses possuem hoje de contratar jovens jogadores europeus entre os 16 e 18 anos.
De acordo com o sistema atualmente aplicado a estrangeiros na Inglaterra, apenas jogadores maiores de idade podem ser contratados. Isso também ocorre no resto do mundo com qualquer transferência internacional, em consonância com o 19º artigo do Regulamento da Fifa sobre o Estatuto e Transferência de Jogadores.
erência de jovens entre os 16 e os 18 anos caso esta se efetuar dentro do território da União Europeia ou do Espaço Econômico Europeu.”
Em razão disso, foram possíveis as contratações de Cesc Fàbregas pelo Arsenal e Paul Pogba pelo Manchester United, por exemplo, antes de completarem 18 anos.
A princípio, isso não seria mais possível após a implementação do acordo do Brexit. Novamente, é importante lembrar do princípio da reciprocidade: Jadon Sancho, um dos jovens mais promissores do futebol mundial, foi para o Dortmund com apenas 17 anos. A joia foi em busca de mais tempo de jogo para desenvolver sua carreira, caminho que outros jovens jogadores ingleses já fizeram.
PL X FA
Lembra que ninguém parecia ligar para a recorrente falta de jogadores britânicos no Arsenal em 2005? Alguém estava ligando, e bastante. A FA. E toda essa situação incerta do Brexit acabou também desencadeando um grande conflito de interesses entre a Premier League e a FA.
O crescente número de estrangeiros nos times europeus após o caso Bosman fez com que a Uefa criasse, em 2006, a “Homegrown Player Rule”. Isso garantiu pelo menos uma cota de jogadores da mesma nacionalidade dos clubes nos elencos.
A FA adorou a ideia. Usando o discurso da invasão estrangeira da Premier League como motivo para os insucessos da seleção inglesa na época, a organização criou a sua própria “Homegrown Player Rule” em 2010.
Isso obrigou os clubes ingleses a contar em seus elencos com pelo menos oito jogadores que tenham desenvolvido suas carreiras por três temporadas completas antes de completarem 21 anos em times da liga inglesa.
Além de restringir a capacidade de contratação dos clubes, essa ação também fez crescer muito o valor de mercado de jogadores desenvolvidos na Inglaterra. Curiosamente, o espanhol Hector Bellerín atende ao requisito de homegrown, por ter chegado ao Arsenal aos 16 anos.
Porém se as novas regras pós-Brexit já existissem na época, sua contratação teria sido impedida, por ele ser um “estrangeiro” menor de 18 anos.
Como a Premier League quer manter o seu status como a principal liga do mundo, a organização e os clubes não querem que o seu poder de contratação diminua por causa do Brexit. Assim, negocia com a FA e com o governo inglês uma flexibilização da emissão dos vistos de trabalho especial para os jogadores da União Europeia.
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Nessa situação, a FA viu uma oportunidade para se beneficiar, e propôs apoiar os clubes e a Premier League caso o número obrigatório de homegrowns aumente, passando pelo menos de oito para doze nos elencos. Para tanto, prometem até tentar abolir o visto de trabalho para os outros treze jogadores estrangeiros, mesmo os não europeus.
Eles acusaram a federação de oportunismo, e a Premier League, em nota oficial, afirmou que “o Brexit não deveria ser usado para enfraquecer os times de futebol britânicos, nem para prejudicar a capacidade dos clubes de contratar jogadores internacionais”.
Os clubes e a liga defendem que grande parte do sucesso e popularidade mundial da Premier League se deve aos jogadores não britânicos, e que suas possibilidades de contratação não pode ser ainda mais restringidas, pois a qualidade dos times e da liga poderia ser afetada.
Os clubes alegam ainda que são seus investimentos próprios nas academias de base que formam os jogadores ingleses. Isso beneficia a FA quando esses defendem as seleções inglesas, além de muitas vezes voltarem machucados.
Andrei Kampff e Luiz Costa comentam esse impasse, que de um lado tem clubes e liga, e do outro, a FA: “Existe um conflito de interesses sim. Tanto que os clubes estão trabalhando junto a Federação Inglesa, e mesmo conversando diretamente com o governo inglês, na tentativa de manter o número de estrangeiros. Com a força que tem, e pelo tamanho do negócio que representa, acreditamos que a liga conseguirá renegociar esse número.”
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Algumas soluções especuladas para essa questão seriam um remodelamento da janela de transferências atual. Ou mesmo um novo sistema meio confuso no qual os clubes que dessem mais tempo de jogo a ingleses seriam beneficiados na hora de assinar com estrangeiros.
Futuro incerto
Muitas dúvidas ainda estão no ar, e a promessa é de que apenas em março o governo inglês dará algumas respostas mais concretas aos clubes sobre os principais pontos desse impasse. Sejam quais forem as mudanças ocorridas, os clubes e a liga deverão ter um tempo de adaptação dos elencos, provavelmente o mesmo tempo do período de transição do Brexit, como lembram os especialistas do Lei em Campo:
“Essa limitação, se houver, não acontecerá a partir de agora, será gradual. Tem ainda muitas questões importantes sendo discutidas, e muito a ser definido com relação ao Brexit e futebol. Não descartaríamos sequer um acordo para manter as regras como elas são hoje. Os próximos meses deixarão todas essas questões mais claras, com a implementação do Brexit e as necessárias adaptações legais que o acordo provocará.”
A Premier League é, talvez, a maior expressão de sucesso da globalização na Inglaterra. De certa maneira, representa os moradores do Reino Unido que desejavam permanecer na União Europeia, incluindo os europeus que lá já viviam, que não queriam a mudança; por outro lado, a FA representaria os conservadores ingleses que votaram para sair do bloco, incentivando políticas nacionalistas.
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Mas será que o Brexit representa alguma possibilidade real de ameaçar o status da Premier League como a principal liga nacional de futebol do mundo? Para Kampff e Costa, há sim essa chance, por mais que, por enquanto, não pareça ser essa a tendência:
“É um risco, mas ainda pequeno. Claro que com o rigor imigratório inglês, e se confirmando novas regras para os atletas europeus e a diminuição do número de estrangeiros nas equipes, a liga pode perder um pouco da força. Entretanto, a Premier League é também um grande negócio, que se cacifou internacionalmente como a liga mais forte do mundo. Mesmo acontecendo essa redução, ela continuará por um bom tempo como o grande centro dos principais valores do futebol mundial.”
Como observado, muitas questões referentes ao Brexit ainda são incertas, e não é diferente com os aspectos referentes à Premier League. Certezas mesmo, por enquanto, só duas: que o Brexit está mesmo ocorrendo, e que, aconteça o que acontecer, continuaremos apaixonados pelo futebol inglês.