Para os mais novos fãs da Premier League ou, mais especificamente, do Manchester City, o nome Bert Trautman pode soar pouco familiar. Algo que certamente teremos de remediar.
Não apenas por sua importância esportiva na Inglaterra, mas também por sua incrível trajetória de vida, a história desse goleiro alemão merece ser contada e jamais esquecida.
Bert Trautmann: de soldado nazista a Cavaleiro do Império Britânico
Uma paixão interrompida pela doutrinação e pela guerra
Bert Trautmann nasceu no dia 23 de outubro de 1923 em Bremen, no Noroeste da Alemanha, onde vivia com seus pais e seu irmão mais velho.
Como era praticamente lei à época na Alemanha, o garoto ingressou na Jungvolk (organização doutrinadora de jovens precursora à infame Juventude Hitlerista), aos nove anos de idade.
Sempre apaixonado por esportes, Trautmann se destacou desde cedo no futebol, no handebol e no völkerball (uma espécie de “queimado”), recebendo diversas premiações e medalhas, dentre elas um certificado de excelência atlética assinado por Paul von Hindenburg, presidente alemão à época.

Apesar de nutrir o sonho de viver exclusivamente do esporte, em 1941, com o início da ofensiva alemã na frente Leste da II Guerra Mundial, Trautmann, então com 17 anos, se voluntariou para a força aérea e, mais tarde, foi realocado para a divisão de paraquedistas do exército alemão.
Durante o conflito, que só teria fim em 1945, o jovem serviu na Polônia, na Ucrânia e na França, além de em sua terra natal.
No período, Bert foi condecorado com cinco medalhas, dentre elas a Cruz de Ferro, uma das maiores honrarias militares concedidas pela Alemanha.
Estima-se que apenas 90 dos mais de mil membros do regimento original de Trautmann sobreviveram ao conflito.
Trautmann prisioneiro de guerra e recomeço na Inglaterra
Após escapar da captura duas vezes – uma dos soviéticos, no fronte oriental, outra da Resistência Francesa, no ocidental – Bert finalmente foi pego e “aceitou” sua sentença em 1945, dessa vez sob custódia do exército britânico.
Com o fim do conflito, Trautmann, primeiramente preso na Bélgica, foi transferido para Essex e, posteriormente, para um campo de prisioneiros de guerra em Northwich.
Inicialmente classificado como um detento classe “C”, ou seja, ainda visto como seguidor da doutrina nazista, Bert logo foi reclassificado como classe “B” – “não-nazista”.
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A reclassificação significava que o veterano, ainda um prisioneiro, podia realizar pequenos trabalhos e interagir livremente com a sociedade local. Foi aí que Trautmann se reencontrou com sua antiga paixão: o esporte.
Entre peladas com seus companheiros de cárcere e contra equipes amadoras das vilas locais, o prisioneiro adquiriu seu apelido de “Bert”. Isso se deve à dificuldade dos ingleses de pronunciarem seu apelido original “Bernd”, e finalmente se encontrou no futebol na posição de goleiro.
Bert ainda se transferiu algumas vezes entre diferentes campos de prisioneiros de guerra, somente readquirindo sua liberdade em 1948.
Início de carreira e a sonhada profissionalização
Com o fechamento do campo onde era prisioneiro, Bert teve a opção de ser repatriado e retomar sua vida na Alemanha. Apesar disso, preferiu seguir trabalhando numa fazenda na vila de Milnthorp. Nas horas vagas, jogando no time amador St Helens Town, pela Liverpool County Combination, liga amadora equivalente à sétima divisão à época.
Claramente um jogador bem acima da média para uma equipe amadora, Trautmann chamou muita atenção. O pequeno St Helens chegou a registrar o público recorde de 9 mil torcedores na final de uma copa amadora local.
Ao final de sua primeira temporada (1948-49), o goleiro não apenas ajudou seu clube a alcançar o acesso à sexta divisão, como atraiu a atenção de clubes profissionais da elite do futebol inglês.
Após disputar 10 partidas pelo St Helens na temporada 1949-50, Bert Trautmann assinou pelo Manchester City. Assim, finalmente realizou seu sonho de infância de atuar profissionalmente.
Além disso, o arqueiro se tornou o primeiro esportista do Reino Unido a vestir um uniforme da Adidas, devido a sua amizade com Adolf “Adi” Dassler, fundador da empresa.
De “inimigo” a ídolo
Bert Trautmann teve a tarefa ingrata de não apenas ser o primeiro alemão a vestir as cores do City após a II Guerra Mundial, mas também de substituir o recém-aposentado Frank Swift, um dos maiores goleiros da história dos Citizens. Em sua chegada ao clube, Trautmann foi recebido com um protesto em Manchester que levou cerca de 20 mil pessoas às ruas.
A recepção nada convidativa e as ameaças de boicotes foram respondidas pelo goleiro da melhor maneira possível: na bola. Em sua estreia, em 19 de novembro de 1949 contra o Bolton, Trautmann foi um dos destaques, o que praticamente o fez cair nas graças da torcida.
Cada vez mais aceito e respeitado entre os Citizens, o arqueiro, entretanto, não deixou de ser alvo constante de insultos, preconceito e hostilidade por parte dos adversários, sobretudo nos jogos fora de casa.
Um episódio que marcou a história do futebol inglês foi a primeira partida de Trautmann em Londres, contra o Fulham. Como grande parte da imprensa britânica se concentrava na cidade, a visita de um ex-membro da Luftwaffe (força aérea alemã) certamente foi o assunto mais abordado e debatido na capital britânica.
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Apesar de já estar novamente agitada e vibrante, Londres ainda sofria das cicatrizes da guerra, grande parte delas infringidas por bombardeios alemães.
Sob gritos de “Nazi” e “Kraut” (“chucrute”), Bert enfrentou não apenas um poderoso elenco do Fulham, mas também a ira de uma inflada multidão em Craven Cottage.
Apesar da derrota por 1 a 0, o arqueiro alemão foi o melhor em campo, evitando um placar muito mais elástico e deixando o gramado aplaudido de pé tanto pela torcida adversária quanto pelos jogadores de ambos os times.
Apesar do rebaixamento do City ao final da temporada 1949-50, o clube voltou dois anos depois à primeira divisão. Nos cinco anos seguintes, Trautmann se consolidou como uma peça-chave do elenco. Foi titular em 245 das 250 partidas do City na liga entre 1951 e 1956.
E foi justamente em 1956 que o arqueiro alemão se firmou como uma lenda na história do futebol inglês.
De ídolo a lenda
Após uma surpreendente campanha na liga, levando o City à 4ª colocação, Trautmann se tornou o primeiro goleiro da história do futebol inglês a receber o prêmio de Jogador do Ano (FWA Footballer of the Year). No final da temporada 1955-56, o arqueiro ainda teve atuação heroica na final da Copa da Inglaterra (FA Cup), contra o Birmingham City.
Logo após perder a final da mesma copa na temporada anterior (para o Newcastle), Trautmann havia declarado que faria de tudo para erguer o troféu em sua segunda tentativa. Ainda assim, ninguém esperava o que estava por vir.
Aos 30 do segundo tempo, quando o placar apontava 3 a 1 para a equipe de Manchester, Trautmann se chocou feio com Peter Murphy, atacante do Birmingham, levando uma joelhada no pescoço.
Como na época não eram permitidas substituições, um atordoado e claramente lesionado Bert Trautmann seguiu em campo. Ainda assim, protagonizou defesas milagrosas nos últimos minutos do duelo e garantiu o título da Copa da Inglaterra.
Quatro dias após o episódio, e após consultas com médicos distintos, um raio-X revelou que o goleiro havia deslocado cinco vértebras, sendo a segunda delas partida em duas.
Foi ainda descoberto que o deslocamento da terceira vértebra, apoiando-se contra segunda, havia evitado uma lesão ainda mais grave, salvando a vida de Trautmann.
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Devido à grave contusão e ao gradual retorno ao esporte, o arqueiro perdeu parte das duas temporadas seguintes, mas, uma vez totalmente recuperado, seguiu com a titularidade incontestada.
Entre 1958 e 1962, foi titular em 162 das 168 partidas do Manchester City na liga. Nos dois anos seguintes, já entrando na casa dos 40 anos, gradativamente foi perdendo seu espaço entre os titulares.
Em seu jogo de despedida do City, em 15 de abril de 1964, cerca de 60 mil torcedores compareceram para prestar suas homenagens ao ídolo. No jogo, Trautmann foi o capitão de um combinado dos dois times de Manchester contra um combinado de estrelas internacionais. O amistoso contou com a participação de craques como Bobby Charlton, Dennis Law, Stanley Matthews e Tom Finney.
Em 15 anos de Manchester City, entre 1949 e 1964, Bert Trautmann atuou em 545 partidas, levantando um troféu de Copa da Inglaterra. Ele é até hoje o goleiro que mais vestiu as cores dos Citizens em jogos da liga.
Apesar de ser um dos maiores goleiros de sua geração, Trautmann nunca jogou por uma seleção. Jamais foi convocado pela Alemanha, por atuar no exterior, e só foi obter sua cidadania britânica anos após sua aposentadoria.
Carreira de técnico e reconhecimento
Entre 1967 e 1969, o agora ex-goleiro treinou equipes pequenas em seu país natal (Preussen Münster e Opel Rüsselsheim). Na década de 1970 entrou para um programa social da Federação Alemã de Futebol (DFB) de promoção do esporte em países mais pobres. Através desse programa, entre 1972 e 1983 treinou as seleções da Birmânia (atual Myanmar), da Tanzânia, da Libéria e do Paquistão.
Em 1997, Bert Trautmann recebeu a medalha de Ordem ao Mérito da República Federativa da Alemanha. Em 2004 foi condecorado com o título honorário de Cavaleiro do Império Britânico (Order of the British Empire – OBE) por seu importante papel na integração anglo-germânica.
No mesmo ano, o lendário goleiro foi incluído, ao lado de outros 14 jogadores, no Hall da Fama do Manchester City. Em 2005 foi a vez do Museu Nacional do Futebol introduzi-lo em seu seleto rol de craques, eternizando-o finalmente nas páginas da história do futebol inglês.
Bernhard Trautmann seguiu acompanhando de perto o Manchester City durante toda a vida, recebendo diversas outras homenagens. Ele faleceu no dia 19 de julho de 2013, aos 89 anos.