Beardsley, Barnes e Aldridge. Um desavisado pode pensar que se trata de uma marca de luxuosos sapatos ingleses, mas para os torcedores do Liverpool, é um poema; para os rivais, uma maldição. Unindo inteligência, técnica e muita, muita velocidade, os três formaram, junto de Ray Houghton, um dos ataques mais poderosos e aclamados do futebol inglês, guiando os Reds ao seu 17º título inglês, em 1987/1988.
A equipe comandada pelo jogador-treinador Kenny Dalglish era uma máquina. Foram 99 gols marcados, 87 só no Campeonato Inglês, no qual sofreu duas das três derrotas da temporada (a outra foi na final da Copa da Inglaterra, para o Wimbledon).
O trio foi responsável por 56 dos gols marcados, ou 57% da produção ofensiva. Mais do que números, foram a alma de um time mágico, eternizado por suas jogadas rápidas, coletivas e mortais, que encantaram torcedores, rivais e aficcionados pelo bom futebol mundo afora.
Cheia de saudade, a PL Brasil fez uma análise desse ataque, pincelando suas origens, ideias, principais jogadas, o peso de Beardsley, Barnes e Aldridge, além de lembrar de alguns dos coadjuvantes de uma das grandes equipes da história do futebol.
O técnico, a janela e a ruptura
Houve uma ruptura na maneira como as coisas eram feitas no Liverpool na temporada 1987/1988. Até porque uma mudança era necessária.
O clube inteiro ainda estava abalado pela Tragédia de Heysel, era odiado pela suspensão dos clubes ingleses de competições europeias, andava trepidante com o comando do ainda jogador Kenny Dalglish e constrangido pelo vice do Inglês de 1986-87, vencido por ninguém menos que o Everton.
E ainda teve o “sim” de Ian Rush para a Juventus, numa transferência recorde de 3,2 milhões de libras. A primeira quebra foi a maneira com a qual essa grana foi usada.
O Liverpool era conhecido também pelos seus negócios austeros e muito bem planejados, escolhendo jogadores a dedo e ou inserindo pacientemente no grupo.
Em 87, no entanto, abriu a carteira para trazer jogadores de baciada e para colocá-los para jogar junto desde o primeiro dia. Vieram, então, Peter Beardsley, do Newcastle, John Aldridge, do Oxford, e John Barnes, do Watford. Mais tarde viria ainda Jay Houghton, também do Oxford, para fechar o lado direito.
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O encaixe dos quatro foi imediato. Tabelas, linhas de passe, corridas sincronizadas, tudo acontecia de forma natural – mas não por acaso. Outra ruptura praticada pela equipe de Dalglish foi no modelo de jogo da equipe.
Sai o jogo de posse inteligente – instituído por Bill Shankly desde a derrota na final europeia para o Estrela Vermelha, em 1973 – e entra uma “verticalidade” inteligente: com a bola no pé, o Liverpool 88 só pensava em ir à frente – com passes curtos, rápidos e no tempo certo, sim, mas sempre à frente.
Ideias simples, execução rica
Movimentos sincronizados, triangulações, timing e muita gente na área: esse era, basicamente, o funcionamento do ataque. Se parece simples, é porque era. Era, também, o grande mérito de Dalglish e sua equipe.
Até porque tudo era feito com muita, muita velocidade. A principal arma, na verdade, era essa. As jogadas eram tão rápidas e bem armadas que eram muito difíceis de ser marcadas, o que era potencializado pela capacidade de Barnes e cia.
Tudo começava com um movimento: os meias abertos, os wingers, sobem e os atacantes recuam. Instantaneamente, criavam-se pelo menos 4 “triângulos” possíveis, entre volantes, wingers e atacantes, sempre com pelo menos um dos homens de frente como vértice.
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Esses triângulos criavam opções rápidas e curtas de passe, assim como uma certa indecisão dos rivais, com tantas possibilidades de jogada. Com passes fáceis e uma defesa distante, as jogadas fluíam.
Toda vez, então, que os Reds tinham a bola “limpa”, isto é, dominada e de frente para o gol, buscava-se esse movimento.
Beardsley e Aldridge, os homens de frente, disparavam de volta para intermediária, para receber a bola e soltá-la assim que possível para um terceiro homem (formando o tal triângulo) e já corriam rumo ao espaço nas costas dos defensores que ou acompanharam até ali.
Ao acionar os atacantes, o time constantemente “quebrava as linhas”. A bola entrava e saía do espaço entre as costas dos volantes e o bote dos zagueiros, e no tempo de indecisão entre os dois, o ataque era armado.
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O terceiro homem, que recebia a bola dos atacantes, o fazia com a defesa adversária desequilibrada, girando do foco aos atacantes para a atenção aos meias. O tempo de reação desses marcadores então diminuía, e as opções aumentavam para quem estava com a bola.
Quando essas pessoas eram Barnes e Beardsley, principalmente, a mágica acontecia. Seu papel era fazer a bola chegar nas zonas de decisão, na entrada da área e na linha de fundo.
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No primeiro caso, ou era tabela curta ou era finalização, enquanto no segundo, o óbvio cruzamento para uma área necessariamente povoada, com pelo menos três homens de vermelho nela.
A ideia nesta última situação era ter o máximo de opções para o cruzamento, as vezes até em maior número do que os defensores. Um ataque à linha de fundo poderia atrair o lateral para o combate e um dos zagueiros para a sobra, restando, na teoria, apenas outro zagueiro e o lateral posicionados para interceptar as bolas na área.
Superioridade numérica dentro da área, quebra de linhas, desequilíbrio da marcação, atração e infiltração, tudo isso está por trás do jogo do Liverpool de 1988.
A simplicidade era um mérito, da tradução desses conceitos em instruções básicas, e com o espaço dado para aflorar a individualidade dos jogadores, no sentido de deixar a sua criatividade, sua entendimento, sua intuição para solucionar os diferentes problemas do jogo.
Beardsley, Barnes & Aldridge
Então, quando se fala do Liverpool de Beardsley, Barnes e Aldridge, não é uma mera figura de linguagem. Os jogadores eram incentivados a criar soluções por eles mesmos ao invés de esperar instruções do treinador.
O Liverpool de 1988 era portanto muito de seus jogadores, das diferentes características que podiam agregar em campo. John Aldridge, por exemplo. O substituto de Rush – que de tão parecido, na bola e na aparência, recusou a camisa nove, para não ficar “preso” nas comparações – era um atacante nato.
Rápido, esguio e técnico, sempre ofensivo. Com o time superando a primeira linha de marcação, buscava atacar os espaços livres, para receber a bola enfiada, ou para atrair a marcação e abrir espaço para os homens que viam.
Dois movimentos seus são muito presentes nos lances de gol e nas grandes jogadas da temporada 1987-88. Primeiro, suas corridas diagonais. Mal Beardsley ou Barnes pegavam na bola, “Aldo” disparava na direção contrária, levando um ou dois marcadores no caminho.
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Depois, as infiltrações. O camisa 8 fazia a leitura das jogadas muito rápido e corria nas costas dos zagueiros para o passe ou pisava na área para ou cruzamentos sempre no tempo correto.
Aldridge fazia uma ótima combinação com Peter Beardsley. O camisa 7 era igualmente veloz e eficaz nas finalizações, mas era mais um articulador, acelerando as jogadas com a bola no pé.
Tinha um excelente controle de bola, e girava e mudava de direção com muita facilidade, então podia atuar mais centralizado, nos pedaços mais congestionados entre o meio e o ataque.
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Ali, buscava ligar os wingers nas jogadas, optando quase sempre pela tabela mais curta e pela opção mais rápida, colocando seu passe e visão acima da média ao dispor da equipe.
Então, John Barnes. É até difícil de falar sobre sua função, porque era capaz de fazer tudo em campo. Drible, passe, chute, cruzamento…o camisa 10 era completo.
Além das atribuições clássicas do winger – recompor, se apresentar no seu corredor, entrar na área nos lances no corredor oposto -, Barnes tinha como função atrair a marcação. Seu porte físico, seu controle de bola e sua visão o capacitavam para enfrentar dois, três adversários de uma vez.
Com ou marcadores na sua cola, bastava soltar a bola para um Aldridge em disparada ou um Beardsley mais próximo – e no tempo certo, outra de suas especialidades. Assim, o meia era o principal “coordenador” das triangulações.
Coadjuvantes, reserva técnica e continuidade
Apesar do peso do trio da frente, não é possível falar do sucesso ofensivo do Liverpool de 88 sem falar dos coadjuvantes, a verdadeira reserva técnica dos Reds. McMahon, no meio, Hansen na defesa, os laterais Nicol e Ablett e, claro, Ray Houghton, todos tiveram sua importância na fase ofensiva.
O que mais chama atenção é a capacidade que têm de dar continuidade às jogadas de Beardsley, Barnes e Aldridge. Houghton se encaixou com facilidade à dinâmica do trio, tabelando e driblando com a mesma facilidade.
McMahon também tinha controle e tempo de bola. Era o mais próximo de um playmaker entre os onze titulares, carregando e soltando e infiltrando. Foi quem mais fez gols na temporada depois dos três da frente.
Nicol e Ablett davam o apoio necessário nos corredores, levando as triangulações para os cantos do campo; Hansen era essencial para o primeiro passe qualificado, além de se aventurar ao ataque de vez em quando.