Depois do empate do Manchester City em 1 a 1 diante do RB Leipzig na última quarta-feira (22), válido pela partida de ida das oitavas de final da Champions League, o desempenho ofensivo abaixo do esperado virou assunto novamente. Em um jogo em que o técnico Pep Guardiola não fez substituições, a bola pouco chegou a Erling Haaland.
A situação rendeu críticas na imprensa. O jornalista Marcelo Bechler, da “TNT Sports”, comparou com o caso de Cristiano Ronaldo. O português não viveu bons momentos em sua volta ao Manchester United e saiu “brigado” com o técnico Erik Ten Hag.
Haaland talvez seja o CR7 desse Manchester City. Os números são muito bons, mas acho que está piorando os outros jogadores, afirmou o jornalista.
O contexto que ronda Erling Haaland
Apesar de Erling Haaland ser o artilheiro da Premier League com sobras na atual temporada, enquanto o Manchester City é o time com mais gols marcados no campeonato, dúvidas sobre esse “casamento” seguem em alta.
O atacante norueguês está há dois jogos sem marcar – com um gol nos últimos seis – e vive momentos de críticas. O argumento é de que, mesmo fazendo muitos gols, ele tem piorado o jogo dos Citizens. Afinal, isso é verdade?
Bechler entrevistou Guardiola após o confronto diante do Leipzig com isso em mente. O catalão afirmou que Haaland está completamente adaptado ao jogo do City, mas que ainda existem pontos a melhorar.
Guardiola: Temos que buscá-lo mais no último momento, mas não é fácil. (Haaland) precisa encontrar os passes um pouco mais, mas, além disso, está mais do que adaptado.
É fato que o camisa 9 do City é um dos grandes goleadores do futebol atual. Isso também é ilustrado em um levantamento de outubro de 2022 do site “worldfootball.net”, transformado em gráfico pelo jornalista John Burn-Murdoch. Nele, é possível ver que Haaland tem a melhor média de gols por minuto entre todos os atacantes das cinco grandes ligas desde 1980. O mais próximo na comparação é Ronaldo Fenômeno.
O maior artilheiro da história da Premier League, Alan Shearer, está longe na comparação. Segundo o gráfico, Haaland se tornará o maior fazedor de gols de todos os tempos se seguir com a média atual.
O norueguês se popularizou pelos gols marcados na Champions League quando ainda atuava pelo Red Bul Salzburg, da Áustria. Ele foi contratado pelo Borussia Dortmund em dezembro de 2019 por 20 milhões de euros, cerca de R$ 90,2 milhões na cotação da época. Haaland se tornou um dos grandes centroavantes do mundo durante seu tempo na Alemanha com características específicas.
Guardiola e sua relação com centroavantes

A chegada do jovem atacante a Manchester já foi alvo de dúvidas por conta de seu estilo. Historicamente, Guardiola teve poucos momentos – e, consequentemente, experiências positivas – com centroavantes menos associativos.
O mais próximo do arquétipo de Haaland com quem o técnico trabalhou talvez seja Mario Madzukic.
Em sua primeira temporada no Bayern de Munique, Guardiola tinha Mandzukic como centroavante titular. O croata era menos famoso por sua técnica e mais por ser um atacante gque ajuda na pressão alta em fase defensiva, por exemplo. Suas principais oportunidades ofensivamente eram em corridas nas costas da última defesa, principalmente a partir de cruzamentos.
Mandzukic terminou a temporada de estreia de Guardiola na Alemanha, 2013/14, como vice-artilheiro da Bundesliga, com 18 gols – dois a menos do que Lewandowski, que ainda estava no Borussia Dortmund. Foram 30 rodadas disputadas e 21 delas como titular. Mesmo marcando gols, o croata também teve desavenças com Guardiola e se transferiu ao fim da temporada.
— Guardiola me decepcionou. Ele não me tratava com respeito. Ele não deixou eu me tornar o artilheiro da Bundesliga – disse Mandzukic ao jornal croata “Sportske Novosti”, em 2014.
Isso aconteceu porque o técnico fez muitos testes nessa posição em específico, por vezes buscando um jogador mais associativo. Mario Götze era o “queridinho” nos testes de falso nove e agradou Guardiola em muitos momentos, diferente de Franck Ribery. O francês foi colocado nessa função, mas não rendeu.
— O francês ainda não vê a ideia com bons olhos (…). Ele demora a compreender que pode dar um salto qualitativo se atuar mais centralizado – revelou Martí Perarnau, autor da biografia Guardiola Confidencial.
Além de Mandzukic, Robert Lewandowski foi um dos raros cases de sucesso de um centroavante “de área” sob o comando de Guardiola. O polonês também revelou que foi moldado pelo treinador e melhorou seu jogo depois de trabalhar com ele.
— Ele me ensinou a ver o futebol de outro ponto de vista (…). Depois da etapa com o Guardiola, penso o futebol de forma diferente – afirmou Lewandowski, em entrevista ao jornal espanhol “Marca” em 2021.
Um caso popular negativamente é o de Zlatan Ibrahimovic. Destaque da Inter de Milão, foi contratado pelo Barcelona de Guardiola por 46 milhões de euros, cerca de R$ 123,7 milhões na cotação da época, mais a ida de Samuel Eto'o ao clube italiano. O atacante sueco, alto e com pouca mobilidade e caráter associativo, mesmo que habilidoso, não se adaptou e viveu polêmicas com Guardiola.
— Ele nunca me entendeu. Ele queria planejar tudo o que eu tinha que fazer – disse Ibrahimovic entrevista ao jornal italiano “Corriere Della Sera” em 2021.
Haaland melhora ou piora o City?

O principal argumento sobre Haaland no City é o seu encaixe – ou a falta dele – no modelo de jogo de Guardiola. Com uma base consolidada do Jogo de Posição, que prioriza distância entre jogadores, criação de padrões para linhas de passe e busca por diferentes vantagens do jogo (numérica, posicional e cinética, por exemplo), o centroavante pode ter suas limitações expostas.
Haaland não é um atacante com características de sair da área para povoar regiões entrelinhas ou ajudar na progressão do time ao último terço com passes curtos ou dribles. Esses foram os casos de outros atacantes usados por Guardiola, como Lionel Messi, Sergio Agüero, Gabriel Jesus e Phil Foden.
O norueguês é um jogador “terminal”, ou seja, aquele que participa pouco de momentos de construção e é mais ativo recebendo o último passe para finalizar. Isso é ilustrado por um levantamento do The Athletic de janeiro deste ano: a média de distância das finalizações de Haaland na Premier League é de 11,8 metros. Essa é praticamente a distância da marca do pênalti.
Recentemente, os poucos toques na bola de Haaland durante os jogos também foram motivos de críticas. Nos quatro últimos jogos em que atuou os 90 minutos, Haaland teve uma média de 25 toques na bola por jogo, segundo dados do Sofascore. Nesse período, foram 10 passes certos dados por partida. Ainda assim, Guardiola encontra outro ponto negativo que não envolve a atuação do centroavante.
Poucos toques do Haaland? É nossa culpa. Erling tem ido bem durante toda a temporada. Temos que procurá-lo um pouco mais, disse Guardiola em entrevista ao jornalista inglês Dan Murphy.
Na atual temporada, Haaland é o artilheiro nas cinco principais ligas europeias com 26 gols, oito a mais do que o segundo colocado, Victor Osimhen, do Napoli. Seus gols esperados (xG) estão em 19,42 – dessa forma, marcou praticamente sete vezes a mais do que o esperado, ou seja, está performando acima do esperado. Se o Manchester City está “pior”, pode ser difícil colocar a culpa no camisa 9.
Números de Haaland
Haaland lidera inúmeras estatísticas ofensivas na Premier League, como gols, gols por 90 minutos, xG, gols de pênalti e toques na área. As que não lidera, geralmente figura no top-5 ou top-3.
Gols – 26 (1º)
Gols por 90 minutos – 1.16 (1º)
Gols de cabeça – 5 (2º)
Gols de pênalti – 4 (1º)
xG – 19,42 (1º)
Toques na área – 138 (1º)
Dados do Wyscout
Mais do que no ataque, Haaland é muito importante no momento defensivo do City. É o primeiro jogador no sistema de pressão alta de Guardiola, que tem o terceiro melhor índice de passes por ação defensiva do campeonato (8,91). Ou seja, os adversários geralmente trocam menos de nove passes antes dos Citizens tentarem roubar a bola.
O camisa 9 é o segundo jogador com mais pressões feitas na Premier League. De acordo com levantamento da Sky Sports, em um período de 17 de janeiro a 19 de fevereiro, foram 263 pressões, atrás somente de Dejan Kulusevski, do Tottenham.
Veredito

Existiram mudanças na forma de jogar do Manchester City para alocar Haaland no time. Na temporada passada, majoritariamente com Foden como último homem de ataque, a equipe partia do 4-3-3 para, na prática, um 4-2-4 sem centroavantes. A última linha contava com os dois pontas, geralmente Mahrez e Grealish, e Foden e De Bruyne por dentro.
Neste caso, Guardiola tinha uma equipe que controlava a posse perto da área adversária e criava superioridade numérica tanto nos lados quanto na região central. Com Haaland, um centroavante mais “tradicional”, a estrutura muda.
O quarteto entrelinhas ainda existe, mas tem o camisa 9 à frente. Dessa forma, o City passou a atuar na maioria das vezes em 4-1-4-1, com Gündogan e De Bruyne por dentro na linha de quatro atrás de Haaland.
Em alguns casos, para manter a linha de volantes com dois jogadores, é possível ver o City com uma estrutura de três zagueiros na prática, transformando-se em um 3-2-4-1. Esse “segundo volante” era João Cancelo em certos momentos, antes de deixar o clube, e passou a ser Bernardo Silva mais recentemente.
Com Haaland, o City passa a ter variações que não apresentava com tanta frequência antes: passes em profundidade e bolas aéreas. O norueguês se coloca muito nas costas da última linha para receber esse tipo de passe, além de ser uma ameaça em cruzamentos.
Antes, o padrão principal de entrada no último terço do City passava por encontrar o ponta aberto no lado oposto e fazer cruzamentos rasteiros para trás para os meias que entravam na área. Com um jogador já estendo lá dentro, a situação mudou.
É possível dizer que a regressão defensiva do City pode ter sido causada, em partes, pela mudança estrutural feita para a entrada de Haaland. Principalmente pela subida de pressão de laterais em regiões muito altas do campo e a “exposição” da defesa nessas situações, ficando geralmente com três jogadores ao invés de quatro.
Por outro lado, o fato de Ederson ter apresentado falhas e um nível possivelmente inferior em relação às temporadas passadas também pode contribuir com essa narrativa. O goleiro é o 20º entre 22 elegíveis no que diz respeito à taxa de sucesso em defesas (62,5%), de acordo com estatísticas do Sports Reference. O líder do quesito é brasileiro: Neto, do Bournemotuh (84,2%). Ele é seguido por Kepa, do Chelsea (81%) e Nick Pope, do Newcastle (79,7%).
Vale ressaltar que, para acionar Haaland, o tipo de passe que o City faz tende a ser mais arriscado. O camisa 9 é um jogador vertical, que rompe nas costas da última linha adversária, e passes em profundidade têm uma relação de risco e recompensa elevada.
Ao invés de uma inversão para a outra ponta, um passe muito comum anteriormente no time de Guardiola, passes de ruptura podem ser interceptados com mais facilidade. Sem tanto controle da posse com esses novos padrões, o City pode se encontrar em mais situações de receber um contra-ataque do que o usual. Também por isso a equipe tem sofrido mais perigo defensivamente.
Em seis anos no Manchester City, é a primeira vez que Guardiola tem um centroavante “tradicional” no elenco. Principalmente levando em conta a série de lesões de Agüero e sua diferença de estilo com Haaland. Há uma via de mão dupla na adaptação: o camisa 9 tem se adaptado ao time, e o técnico também tem trabalho para adaptar suas ideias ao novo jogador.