A jogada do Manchester City que ninguém conseguiu parar

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Em um clube de futebol, a temporada seguinte à conquista de um título pode ser bastante complicada. As expectativas são maiores, assim como a pressão, tanto de dentro, como de fora.

Para piorar, os adversários conhecem melhor as jogadas do campeão, e jogam com aquela vontade extra quando reencontram seu algoz do passado.

Por conta disso, muitos times decidem se reinventar, renovar posições, revisar táticas, na tentativa de manter a motivação dos jogadores e ainda surpreender adversários. Mas não o Manchester City.

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Os Citizens conquistaram o bicampeonato praticamente sem mexer no elenco, e sem abrir mão de sua principal jogada ofensiva: o cruzamento rasteiro.

De todos os 95 gols que fizeram na liga em 2018-19, 28 foram marcados após cruzamentos rasteiros, cerca de 30% da produção ofensiva.

Foi a jogada mais produtiva do City no ano, quase o dobro das “concorrentes”, os cruzamentos laterais aéreos (16) e os lançamentos e bolas enfiadas (somados, 15), e um pouco menos que o triplo dos chutes de fora (12).

Considerando que, entre os atacantes do elenco, apenas Sané, com 1,84m, e Mahrez, com 1,79 – justamente os que menos pisam na área – têm mais de 1,75m de altura, é possível dizer que a insistência na jogada é adequada.

Sterling (1,70m) e Agüero (1,73) são dois dos “baixinhos” do ataque do City. (Foto: Reuters/BBC)

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Acontece que relacionar o fato a uma questão meramente física parece uma simplificação barata. Sinceramente, é um certo desrespeito à mente que decide o volume em que essas jogadas acontecem: a de Pep Guardiola.

Afinal, o lance já acontecia em demasia no seu Barcelona e até no seu Bayern de Munique, mesmo com os altos Lewandowski e Müller no comando do ataque. É uma das principais armas de Pep. Não à toa, o chama de ‘half-goal” (meio-gol).

Os cruzamentos rasteiros do Manchester City são, para todos os efeitos, uma estratégia do treinador, e se relacionam com seu estilo de jogo e a sua filosofia de futebol adaptada à Inglaterra, além, é claro, dos jogadores que treina, mas para além daqueles que empurram a bola para a rede.

O City e a fórmula Guardiola

Desde a saída do Barcelona, em 2012, a carreira de Guardiola incorporou um certo aspecto científico, com o treinador buscando absorver outras influências do esporte, mas numa constante troca, levando sua “palavra” à outras escolas de futebol, até para mostrar que seu jogo é maior que o tiki-taka, e que suas vitórias vão além de Messi-Xavi-Iniesta.

Conta o excelente “Guardiola Confidencial” que, ao chegar no Bayern, o espanhol se preocupou em, ao mesmo tempo, incorporar na equipe alguns de seus conceitos básicos, mas sem deixar de respeitar a tradição do time e do futebol local.

O meio-termo que o treinador encontrou foi um compromisso de duas vias. Os jogadores obedeciam à sua saída de bola lenta e construção agrupada, ao passo que, ultrapassada a intermediária, ele permitia os jogadores alçar a bola na área à vontade, contanto que pressionassem como loucos o possível rebote desses cruzamentos.

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Assim, o Bayern: 1) usava dos conceitos vitoriosos de Pep; 2) mantinha os jogadores confortáveis na hora da criação, cruzando a esmo, como sempre fizeram; 3) respeitava o futebol alemão, ao criar, com a briga pela segunda bola, um antídoto aos perigosos contra-ataques da Bundesliga.

Pois bem, desembarcando na Inglaterra três anos depois, a preocupação de Guardiola era similar.

Depois de uma temporada de muito estudo, seja do campeonato, seja de seu próprio elenco – que resultaria na pior temporada de sua carreira, 3º na liga e sem títulos -, Pep pôde identificar os caminhos a serem seguidos.

O treinador e sua comissão se colocaram a missão de costurar seu conceito de agrupamento de jogadores e precisão na saída de bola. Um jogo que precisava ser rápido e objetivo, sem esquecer de manter seus jogadores confortáveis em suas funções e posições.

A “fórmula do sucesso” foi encontrada ao aplicar a velocidade à construção agrupada; o conforto no encaixe minucioso e repetição dos jogadores em suas funções, como Sterling como um segundo atacante, Sané como um ponta natural, De Bruyne como um armador que acelera, etc.

A objetividade, ficou, como você pode imaginar, para os cruzamentos rasteiros – na verdade, para uma zona bastante específica do campo, que, ao ser acionada, torna a jogada irresistível, quando não infalível.

Nos bolsos ingleses

Jonathan Wilson, colunista do The Guardian e autor de “A Pirâmide Invertida”, os chama de pockets – “bolsos”, em tradução livre. São os espaços entre o lateral e o zagueiro mais próximos, que surgem à mínima indecisão da dupla em relação a quem acompanha o adversário que ali se projeta.

Segundo Wilson, esses buracos da marcação são a nova região de controle do mudar jogo, isto é, que geram a maior possibilidade de gol, substituindo o “funil”, a região bem à frente da área, às costas dos volantes, que ficou “manjada” depois que um certo treinador espanhol colocou um certo atacante argentino para jogar ali, e mudar a história do futebol no processo.

Esse mesmo treinador, que agora comanda o City, também entendeu ser legítima essa mudança no espaços do jogo.

O City se esbanja na bola entre zagueiros e laterais, muito difícil de se marcar. (Foto: John Sibley/ Reuters)

No Barcelona, nos conta Thierry Henry, Pep fazia seus pontas ocuparem os bolsos no tempo certo, prendendo toda a zaga adversária, e, num efeito cascata, espaçando o meio de campo, abrindo assim o tal do funil.

Se na Espanha os bolsos eram uma estratégia, um meio, na Inglaterra eles são o fim, uma rota clara para chegar ao gol. E saber como e onde se quer chegar ao atacar torna a equipe muito mais objetiva – e perigosa.

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O Manchester City se movimenta para abrir o espaço dos bolsos, e busca a projeção mais rápida por ali, para decidir, com um chute ou uma assistência, que, no caso, costuma ser o cruzamento rasteiro.

Repare no vídeo abaixo, um compilado dos melhores momentos da vitória do City contra o Fulham, na 5ª rodada da Premier League, por 3 a 0.

Veja como e quantas vezes os jogadores recebem a bola entre os zagueiros e os laterais, e quantas resultam em cruzamentos rasteiros, e em gols, enfim.

A jogada do Manchester City é, então, mais do que uma jogada fácil, um atalho, um “meio-gol”. É uma consequência natural da visão do treinador para o time e para a competitividade do futebol inglês.

Mais ainda, sua eficiência é uma evidência, para além do sucesso dos treinamentos, do encaixe que a ideia proporcionou ao elenco do City, potencializando as principais características dos principais jogadores do time.

No City, meias ficam no meio, pontas nas pontas e Agüero no centro de tudo

No começo de novembro de 2018, o City venceu o clássico com o Manchester United por 3 a 0. O terceiro gol, anotado por Gündoğan, foi um golaço, criado a partir de um troca de passes que envolveu todos os jogadores de linha.

O gol foi também uma ilustração da essência do time, uma circulação rápida, objetiva, lúcida e sempre perigosa. Foram 44 passes em um um minuto e 55 segundos, numa média de um passe a cada 2,5 segundos, sendo que a maioria foi para frente, ou claramente visando a projeção da equipe ao ataque.

Tamanha eficiência na execução do jogo acontece, além do acúmulo de horas e horas de treinos, só quando há uma sintonia fina entre os jogadores em campo, isto é, com todo mundo ciente do que precisa fazer, e do que o companheiro precisa fazer também. Um time entrosado, em outras palavras.

De fato, os Citizens nunca foram tão regulares na escalação, sob o comando de Guardiola. Foram apenas 21 jogadores utilizados na Premier League 2018-19, quatro a menos que nas duas últimas temporadas.

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Destes 21, apenas 14 fizeram mais de 50% dos jogos, ou seja, houve claramente um grupo titular, com onze iniciais e três reservas, o que é incomum para uma equipe com um comandante tão inquieto como o que tem na área técnica.

A conclusão é que o perfeccionista Guardiola encontrou um time. Isso quer dizer que não só os jogadores são os certos, mas também que estão jogando da maneira certa, tanto para eles quanto para o time, fato decisivo para a sintonia vista em lances como o do gol de Gündoğan contra o United.

Se olharmos novamente a jogada antológica, dá para notar o quão automáticas são as reações e as decisões dos jogadores. Mais do que cientes e treinados, eles estão confortáveis em suas posições, e, principalmente, em seus movimentos.

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Sterling está sempre se projetando; David Silva toda hora recebe entre as linhas de marcação; Bernardo Silva faz o movimento do lado direito para dentro do campo, com a sua canhota calibrada; Fernandinho sempre recebe a bola na base da jogada, sem precisar de grandes giros ou de carregar a bola, e Sané, sempre bem aberto pela esquerda, só toca na bola quando está em condições de ir para o um contra um.

São ações quase que intuitivas, executadas numa velocidade naturalmente maior do que a do tempo de resposta da marcação, e posicionadas, ainda por cima, de forma a potencializar a chegada da bola nos tais “bolsos” – o que também acontece no lance em questão, com Sterling recebendo e encontrando Bernardo Silva livre para a assistência.

Isso acontece também com Laporte, que com a movimentação dos laterais, pode sempre buscar um passe direto para os pontas no um contra um. Com De Bruyne também, que abre espaços tanto com passes quanto com sua movimentação constante. E com Agüero.

Confortáveis em campo, caras como Bernardos Silva e De Bruyne pode fazer o jogo rodar rapidamente, e com qualidade. (Foto: Reuters)

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O atacante, aliás, é o que tem os movimentos mais específicos, únicos, e provavelmente os mais importantes para a execução dos ataques do City, e para o sucesso dos cruzamentos rasteiros.

Com mais de 230 gols pelo clube de Manchester, o argentino é obviamente o alvo principal dos cruzamentos rasteiros.

Sua colocação dentro da área tem um quê de clarividência, ao parecer adivinhar onde a bola vai chegar. Aliado à sua potência física e tempo de bola, ela faz de Agüero o dono da pequena área.

Porém, é fora dela onde o camisa dez é mais importante, até porque Sterling, Gündoğan e companhia têm plena capacidade de concluir os “meio-gols”.

Agüero faz um pivô moderno”, adaptado ao seu biotipo, à velocidade do jogo de hoje e, principalmente, aos comandos de Guardiola.

Ao clarear uma bola com os meias ou os laterais, o atacante tem a leitura rápida e a explosão para se tornar uma opção fácil para o passe. Ele desgarra-se dos zagueiros rumo às costas dos volantes.

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Com Agüero recebendo a bola ali, o ataque do City já está armado. O jogador, afinal, é quem faz da troca de passes da equipe tornar-se uma ameaça. Sua posse da bola é como um checkpoint, marcando o fim da construção da jogada e o início de sua finalização.

Capaz de proteger e controlar muito bem a bola, Agüero tem também um entendimento rápido da jogada. Ele sabe quando tabelar, quando acelerar, ou quando livrar-se da bola e se projetar no espaço certo.

Quantas bolas o argentino recebe livre, faz a opção rápida do passe e já se manda para a área para completar o cruzamento? Sem falar nas corridas nas costas dos zagueiros para as bolas enfiadas, que tem igual capacidade de executar.

A defesa, então, fica numa eterna dúvida, sem saber exatamente para onde ir, ou qual jogada marcar. Mais uma vez, é nesse pequeno tempo da dúvida que as jogadas do City aceleram.

O passo à frente do City

Outra informação valiosa encontrada em “Guardiola Confidencial” é a obsessão do treinador pelo passo seguinte ao título, nos segredos de se manter o alto nível depois de se alcançar um objetivo.

No Manchester City, a ideia não é necessariamente se renovar, mas acelerar. “Nós entendemos o que queremos fazer mais rápido”, disse Guardiola ao Telegraph.

Com suas ideias, o treinador enxergou que o caminho para a continuidade do sucesso era investir ainda mais alto nas jogadas que deram certo.

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O espanhol deu passo mais fundo na estratégia, enquanto tira um pouco o outro pé da tática. A questão não é só posicionamentos e respostas para esses posicionamentos, mas  também o que de fato dá certo e o que não dá.

É provável que o “ladrão de ideias” tenha se inspirado justamente no maior adversário, o Liverpool de Jürgen Klopp, que na temporada 2017-2018 se baseava muito na velocidade em que o trio Salah-Mané-Firmino – que Guardiola chamou de “praticamente imparável” – se movimentava, independente se era algo largamente compreendido pelos adversários.

Nesse sentido, os cruzamentos rasteiros foram algo a se investir ainda mais, com a “redescoberta” do espaço entre zagueiros e laterais.

Tudo isso fez com que a jogada se tornasse quase automática. E, ainda que todos soubessem do potencial do City em fazer essa jogada, sua velocidade era tão alta e sua execução tão bem feita que ninguém conseguiu parar.

Lucas Ayres
Lucas Ayres

Repórter da Placar. Para mim, futebol é para todos e fim de semana só é bom quando tem Premier League